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‘Tudo que queremos consumir de forma mais barata, alguém vai pagar no futuro’, diz sócio da Mercur

Prestes a completar cem anos, empresa promoveu uma guinada sustentável e mudou forma de comprar borracha

Por 33° Curso Estadão de Jornalismo
Foto: Mercur/Divulgação
Entrevista comJorge Hoelzel NetoSócio da terceira geração da Mercur

Em vez de decidir quase tão somente pelo preço, escolher o que é mais sustentável na hora de comprar matéria-prima. E evoluir no conceito com a busca ativa de fornecedores que tiram o látex de seringueiras nativas, provocando menos impacto socioambiental. Essa virada de chave hoje dá o tom do processo de produção da quase centenária Mercur, marca que provavelmente fez parte de sua vida escolar, gravada em borrachas branquinhas, verdes ou bicolores, daquelas com o lado vermelho maior do que o azul.

“Decidimos parar de usar a borracha sintética ou diminuir muito o uso, independentemente do preço”, diz Jorge Hoelzel Neto, integrante da terceira geração da empresa familiar criada em 1924. “Tudo que pagamos barato, tudo que queremos consumir de forma mais barata, alguém está pagando ou vai pagar no futuro.”

A mudança começou em 2008. Com a demanda por responsabilidade ambiental crescendo, a fábrica com sede em Santa Cruz do Sul (RS) contratou uma consultoria especializada. “A empresa não tinha praticamente nenhum indicador ambiental, embora seguisse a legislação já naquela época”, lembra Hoelzel Neto. A produção utilizava borracha sintética, resultante da separação de produtos químicos derivados de petróleo e do gás natural, sempre que o preço dessa matéria-prima estava mais baixo do que o da seiva das seringueiras.

Mais recentemente, a Mercur vem chamando atenção ao comprar o látex diretamente dos seringueiros que trabalham na Reserva Extrativista do Iriri e da Terra Indígena Xipaya, localizadas na região da Terra do Meio, no Pará. Em entrevista ao Estadão, Hoelzel Neto conta mais sobre o projeto Borracha Nativa, que garante renda para 933 produtores locais, e sobre o processo de transformação da empresa.

'Não queríamos que ribeirinhos ou povos indígenas se tornassem, novamente, empregados da borracha', diz Hoelzel Neto Foto: Mercur/Divulgação

A Mercur decidiu fazer uma “virada de chave” em relação à sustentabilidade. Como foi o processo?

Estávamos terminando um processo de revisão de marca da Mercur em 2008 e ouvimos falar sobre sustentabilidade. Contratamos uma empresa de consultoria que fez um diagnóstico em relação a questões socioambientais e financeiras. O resultado foi que a Mercur tinha uma posição muito forte no viés econômico, mas não tinha essa mesma expressividade em termos de responsabilidade socioambiental. Embora achássemos que já fazíamos muita coisa, não tínhamos nada oficializado, não tínhamos indicadores. Chamamos o Instituto Paulo Freire para desenvolver técnicas de treinamento e criar um espaço de aprendizagem. Isso nos levou a construir um arcabouço estrutural para entender e agir em cima da responsabilidade.

Como essa mudança foi incluída na lógica de produção?

Algo que mudou foi a compra da borracha. Depois dessa reformulação, percebemos que a nossa responsabilidade ambiental precisava ser maior. Passamos a buscar matérias-primas mais renováveis e a borracha natural é completamente renovável. É, inclusive, o que mantém a floresta em pé. Resolvemos parar de usar a borracha sintética ou diminuir muito o uso, independentemente do preço, se fosse mais barato ou mais caro. Queríamos que os nossos produtos tivessem o máximo possível de borracha natural ao invés da sintética. Esse foi o caminho que seguimos.

Qual a diferença da borracha nativa para a borracha cultivada?

A borracha cultivada é criada em uma arvorezinha do lado da outra e interfere no bioma, porque você tira toda plantação que existia naquele lugar e implanta uma floresta de seringueiras. Ela influi no bioma porque se torna uma monocultura. Além disso, tem um processo de colheita diferente. Você precisa de um seringueiro, um empregado de fazenda que ganha um salário para ir lá e tirar a seringa. Já o látex nativo está no meio da floresta. É uma árvore no meio de tantas outras que já existem ali. E, nesse caso, a retirada é feita pelos próprios ribeirinhos ou por povos indígenas, que vivem na floresta e da floresta.

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Na borracha da Mercur, qual é a proporção de matéria-prima que vem de reserva extrativista?

Ainda é muito baixa, em torno de 3%. Por isso, estamos buscando novos locais de colheita. Não queremos forçar os seringueiros daquela região a coletar mais látex porque não queremos interferir na vida deles. Eles têm outras culturas. O látex é só um dos itens dentro da cesta de produtos da floresta e dá bastante trabalho porque precisa ser polido e moldado para ser enviado à indústria. Não queríamos que ribeirinhos ou povos indígenas se tornassem, novamente, empregados da borracha. O que queremos é que eles tenham uma renda a partir da borracha e sejam livres para realizar a colheita da maneira que quiserem. Nós nunca colocamos nenhum plano de incentivo para que eles extraíssem mais látex.

Qual a relação da Mercur com os seringueiros? Qual o impacto da empresa na vida deles?

Os seringueiros criam essas comunidades em locais físicos, se associam e reúnem a borracha coletada. A Mercur compra a borracha da associação. Além de pagar o preço da borracha, pagamos pelos serviços ambientais para a associação, que remunera os seringueiros. Em cada lugar tem uma associação. Tem a da Reserva Extrativista do Rio Branco, do Rio Xingu… São cinco ou seis associações que existem por lá. Porém, nós só trabalhamos no Estado do Pará, por enquanto, na região chamada Terra do Meio. É uma área de reservas extrativistas do governo e essas pessoas vivem ali. Adquirimos a borracha dali, mas estamos em busca de novos fornecedores em outras regiões, como Rondônia, Acre e Amazonas.

À medida que vocês foram criando normas de compensação ambiental e projetos voltados à sustentabilidade, houve ganhos financeiros?

Do ponto de vista financeiro, essas medidas não são tão boas assim. Ser sustentável custa caro. O sistema que nós, seres humanos, criamos para viver, não se sustenta. Tudo que pagamos barato, tudo que queremos consumir de forma mais barata, alguém está pagando ou vai pagar por isso no futuro. A variação climática que nós já enfrentamos, por exemplo, é o preço que estamos pagando por tudo que fizemos de errado até aqui. Ir contra isso (a lógica convencional do mercado) encareceu nosso processo, nossa empresa se tornou menos rentável economicamente. No entanto, em termos de saúde e benefício socioambiental, acreditamos que estamos à frente de outros negócios. Acreditamos que esse movimento socioambiental é mais importante do que o dinheiro, mas ainda precisamos construir esse equilíbrio. (Reportagem de Catarina Carvalho, João Coelho e Mirella Joels)

 
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